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Antonio Montano

De Rua do Pocinho a Vieira de Carvalho: história de um hotspot gay de São paulo

Para quem conhece um pouco da boemia paulistana, quando ouvimos falar de Dr. Vieira de Carvalho, logo nos vem à mente a rua que é um dos mais antigos polos de concentração da comunidade gay. Um lugar boêmio que sempre fez parte importante da história de como era, e ainda é, vivida a homossexualidade na cidade de São Paulo.


Av. Vieira de Carvalho. (Foto: Reprodução Internet)

Veja que, aqui, não uso a sigla LGBT para me referir ao público dos bares, restaurantes e casas noturnas que já tiveram ali o seu endereço. Isso, porque realmente o local sempre teve uma frequência quase que totalmente masculina.


Mas, afinal, quem foi esse tal doutor e porque a rua faz a ele essa homenagem?


Antes de tudo, saiba que ela não é uma rua, ela é oficialmente uma avenida. E isso eu descobri sem querer, fazendo uma pesquisa no Dicionário de Ruas da Prefeitura de São Paulo, o DIC.ruas, em busca de uma foto do centro. Quando me dei conta, em uma lista de infinitas ruas, o nome Avenida Dr. Vieira de Carvalho parece que piscou para mim.


Como vizinho e frequentador desde os anos 90, a curiosidade bateu e ali acabava a minha busca pela tal imagem de outro contexto e meu interesse se transformou em “quem foi esse cara?”.


Rua Vieira de Carvalho em data desconhecida antes de ganhar seu canteiro central e se transformar oficialmente em uma avenida. (Foto: Arquivo Histórico Fotográfico de São Paulo)

O início me pareceu um tanto quanto cruel e fantasmagórico. Tanto que resolvi buscar a história em outros lugares para checar a veracidade. Ainda não estou muito convencido, porque todas as fontes encontradas contavam esse início de uma forma muito semelhante, quase que copiadas umas das outras. Ou seja, apesar dos mesmos acontecimentos terem sido contados em vários lugares, todos beberam da mesma fonte. Será que ela estava certa?


A ainda Rua Vieira de Carvalho, na altura do cruzamento com a Rua Aurora. (Foto: Reprodução internet/ autor desconhecido)

Uma morte, uma cruz e uma igreja antes da boemia


Tudo indica que, até o início do século XIX, a via se chamava Rua do Pocinho. Mas, apesar da forma no diminutivo parecer carinhosa, a justificativa não é tão simpática. Ali, existia um poço, e um funcionário do dono daquela terra entrou no canal para uma limpeza. Porém, a corda que o segurava arrebentou enquanto descia e ele caiu de uma altura considerável direto no lençol de água, lá embaixo.


Pela limitação de ferramentas da época, o resgate daquele indivíduo não foi possível e, lá no fundo, ele ficou até a morte. O poço foi inutilizado e fechado pelo seu dono e a população da região fincou ali uma cruz, uma tradição cristã em sua memória e como uma forma de pedir que Deus recebesse aquela alma.


Um tempo depois, ali foi construída uma pequena igreja católica, a Capela da Santa Cruz do Pocinho. A localização exata nenhuma fonte informa, exceto uma blogueira que, em 2014, fez uma postagem contando a história na qual afirma que o poço, a cruz e depois a capela ficavam bem no meio da segunda quadra, do lado esquerdo de quem segue da República para o Arouche, onde por muitos anos funcionou a Doceria Dulca, no número 145.


Neste endereço, também funcionou a praça de alimentação Spazio. Não encontrei nenhuma informação, contudo, levando em consideração minha memória e experiência na região, arrisco dizer que o negócio ali está fechado há mais de dez anos e nada mais funcionou no local.


Será que o abandono do espaço e dificuldade de vingar ali um negócio tem a ver com a energia do local? Espero que não, afinal, no mesmo endereço, sobre o salão fechado existe um condomínio residencial.


Avenida Vieira de Carvalho, 145, local onde funcionou a Doceria Dulca e uma praça de alimentação com vários restaurantes, e está vazio há anos. (Foto: Reprodução Google Maps)

Uma matéria sobre a história da avenida no portal do Estadão conta que, com a construção da capela, a via também ficou conhecida como Rua da Santa Cruz do Pocinho ou também como Rua Santa Cruz. Porém, não era um nome oficial pois, na época, tanto a população como a Câmara Municipal davam apelidos às ruas.


Vieira de Carvalho foi um dos berços da dança cururu


Dali para frente, as narrativas, versões e momentos da história são diversos. Mas um dos que mais achei interessante (o que não quer dizer que seja real) também foi trazida pela matéria do Estadão. Apesar de um texto um tanto quando rebuscado e de interpretação complexa, o autor dá a entender que a região foi uma das origens da chamada Dança Cururu, uma coreografia folclórica em formato de casais que, atualmente, é típica dos estados do Centro-Oeste.


Contando esse causo resumidamente, apenas como curiosidade, os povos indígenas, bastante presentes na região, não conseguiam pronunciar sílabas da língua portuguesa com encontros consonantais, como o "cr" em "cruz". Então, eles pronunciavam "cururu".


O nome cururu também se referia a uma espécie de sapo na língua tupi e a uma dança tradicional desses povos originários. Sendo assim, na época, os jesuítas aproveitaram essa confusão linguística e transformaram a "Dança cururu" na "Dança da Cruz", uma prática que deveria ser limitada apenas dentro das igrejas.


Contudo, a dança começou a ser uma manifestação folclórica em ambientes pagãos e, o que passara a ser um ritual tradicional na chamada "Festa do Pocinho", foi proibida pela igreja católica, em 1909. Então, o poço e a capela foram demolidos e, no local, foi construído um dos primeiros prédios.


Dr. Joaquim José Vieira de Carvalho


O nome completo do homem que dá o nome à avenida é Joaquim José Vieira de Carvalho. Nascido em Santos, foi um dos homenageados do jornal A Tribuna publicado no dia 26 de janeiro de 1939. Uma edição especial do centenário da cidade que trazia uma "Galeria dos Juristas Filhos de Santos", cujo texto que se refere ao Dr. Vieira de Carvalho reproduzo abaixo na íntegra.


Foto e homenagem ao Dr. Vieira de Carvalho em edição especial do jornal A Tribuna publicada no dia 26 de janeiro de 1939 (reprodução internet)

Vieira de Carvalho (Dr. Joaquim José Vieira de Carvalho) - Nasceu em Santos, a 18 de maio de 1842, como filho legítimo do capitão José Antonio Vieira de Carvalho e de d. Anna de Jesus Vieira, ambos de tradicionais estirpes santistas.

Fez em Santos seus primeiros estudos, seguindo mais tarde para São Paulo, onde concluiu os preparatórios e se matriculou na Faculdade de Direito, de que foi um dos mais notáveis estudantes, recebendo o grau de bacharel em 1862. Um ano depois defendia tese, recebendo a láurea de doutor, sob aplausos de lentes e condiscípulos.

Logo depois de formado, em 1864, foi nomeado juiz municipal em Campinas, onde foi um dos fundadores do Colégio Culto à Ciência, com outros vultos eminentes do momento científico e literário de São Paulo.

Por decreto de 9 de novembro de 1881, foi Vieira de Carvalho nomeado catedrático de Economia Política da Faculdade de Direito de São Paulo, com posse a 26 do mesmo mês, passando logo depois a docente em Direito Eclesiástico, substituindo a Martim Francisco (licenciado) e em Direito Civil, substituindo o dr. Falcão e outro eminente mestre, temporariamente afastados.

Desde moço filiou-se ao Partido Conservador, desempenhando vários cargos de confiança e mandatos políticos, apesar do que foi um dos grandes propugnadores do abolicionismo paulista, auxiliando e orientando seus paladinos, ou defendendo-os na tribuna do júri, sempre que necessário.

Foi deputado provincial na 22ª legislatura, de 1876 a 1877, e na 23ª, de 1878 a 1879, ao lado do barão de Jaguara, Martinho Prado, Martim Francisco, Prudente de Moraes e outros. Foi vereador em Santos, em diversas legislaturas, e, aderindo à República, em respeito a seus merecimentos, elegeram-no deputado, à Constituinte Paulista de 1891, sendo eleito, no mesmo ano, senador estadual à primeira legislatura. Nessa ocasião, solidário com o presidente do Estado, dr. Américo Brasiliense, apoiou o golpe de Estado do marechal Deodoro. Derrotado, com seus companheiros, retirou-se à vida privada, consagrando-se nos misteres de sua profissão.

A 7 de fevereiro de 1896, foi nomeado catedrático da primeira cadeira de Economia Política, Ciência das Finanças e Contabilidade do Estado, lugar em que faleceu, três anos depois, a 23 de setembro de 1899.

Vieira de Carvalho era pai do notável cientista dr. Arnaldo Vieira de Carvalho, nascido em Campinas, quando o ilustre santista desempenhava ali as funções de juiz municipal.

Vieira de Carvalho deixou impressas quatro obras, das quais se destacam Theses e dissertações, Faculdade de Direito de São Paulo e a Memória histórica de 1874, além de muitos trabalhos na Revista Jurídica, do Rio de Janeiro.


As fontes de pesquisa apontam que, o nome do jurista foi dado à via, ainda com a tipologia de rua, pelo Ato nº 972 de 24 de agosto de 1916 e, somente posteriormente, pela Lei nº 4.320 de 26 de agosto de 1952, tornou-se oficialmente uma avenida. Contudo, nenhuma delas traz maiores explicações da circunstâncias e motivos da homenagem.


Monumento "Índio Caçador"


Para alguns, a estátua do homem indígena que fica bem no início da avenida, observando pensativo e virado para a Praça da República, é a marca registrada da Vieira de Carvalho. Já, para outros, a escultura passa totalmente desapercebida em meio a poluição visual e de informações por todos os lados da região.


No entanto, de uma coisa pouca gente sabe. A obra "Índio Caçador" de 1939, em bronze sobre um pedestal de granito e assinada pelo artista João Batista Ferri, fica, oficialmente, na Praça da República.


Sim, é isso mesmo que você leu, o índio pertence à Praça da República e não à Avenida Vieira de Carvalho. Ele é considerado parte da coleção de 12 monumentos que estão na área verde, apesar de localizado fora de seu perímetro.


O Índio Caçador, de João Batista Ferri, fica no canteiro central da Av. Vieira de Carvalho, mas oficialmente é parte da coleção da Praça da República. (foto: Reprodução)

Não há indícios claros do propósito do artista ou de uma única interpretação, contudo, o site de arte Demonumenta, da Faculdade de Arquitetura de Urbanismo da USP, lê a obra de forma muito interessante e explicaria um pouco essa questão de sua localização: "o índio que observa de longe a mata implantada na praça, com olhar um pouco melancólico, como quem olhava procurando e encontra algo impróprio ou incômodo".


O charme da década de 40 persiste até hoje


Na década de 40, pouco antes de se tornar oficialmente a Avenida Doutor Vieira de Carvalho, a via se transformou em um dos mais belos boulevards da cidade, assim como também era a Avenida São Luiz. E carregou esse título, considerada uma rua chique da elite paulistana, por décadas.


Av. Dr. Vieira de Carvalhoem 1940, vista do cruzamento com a Rua Aurora a partir da Praça da República (Foto: Reprodução internet/ autor desconhecido)

Também foi nessa época que começou a se tornar um polo gastronômico da cidade. Um dos primeiros a abrir as portas ali foi a Brasserie Paulista, casa da família Fasano que ficava bem na esquina com a Praça da República, onde era o Café Vermont (este continua na avenida mas em novo endereço).


Ainda na década de 40, à direita vemos o Largo do Arouche e ao fundo a Praça da República. (Foto: Reprodução internet/ autor desconhecido)

Seus canteiros centrais já foram floridos e por suas calçadas, bares e restaurantes passavam membros da elite da cidade e intelectuais. Contudo, dentro do que podemos esperar da região central na atualidade, podemos dizer que ela ainda traz um pouco do charme que tinha na década de 40.


Ocupação pelo público gay


É na Vieira de Carvalho que fica o bar gay em atividade mais antigo de São Paulo, e me arriscaria a dizer que, se não for o mais, é um dos mais antigos do Brasil.


Inaugurado em 1943, nasceu como Bar Pierrot até assumir o nome com o qual alçou fama até fora do Brasil: Caneca de Prata. O espaço resistiu à ditadura militar, a crises econômicas e até à pandemia. Funciona até hoje no mesmo local, no número 55, na primeira quadra da avenida.


Cícero de Oliveira comprou o bar em 2002 e, após a pandemia, deixou a gestão do local. (Foto: Reprodução internet)

Como muitos bares gays da cidade, o Caneca não nasceu com esse propósito. No início era um espaço de executivos da região e de intelectuais, até que os homossexuais o adotaram e ocuparam o espaço. Talvez, por essa herança do perfil de frequentadores, tenha se tornado um reduto dos homens mais maduros.


Mas a ligação com o público gay da Vieira de Carvalho vem antes disso, da virada do século XIX para o início do século XX. Nessa época os homossexuais não tinham um local que existisse para eles, exceto aqueles de onde ninguém poderia expulsá-los: os espaços públicos.


Os gays praticavam o chamado footing em praças e parques, caminhando de um lado para outro de forma discreta até perceber se encontrava alguém com interesse recíproco. E isso era bastante presente na Praça da República e no Largo do Arouche. E, ligando estes dois espaços, está a Vieira de Carvalho que se tornou parte dessa passarela.


Por isso, ao contrário do que muita gente pode pensar, não foram os bares que trouxeram os gays para a região, mas o oposto, o público homossexual, ao ocupar espaços como o Caneca de Prata, se mostraram uma clientela fiel e, assim, outras casas foram chegando, como os icônicos Habbeas Copus e Lord Byron. E isso acontece até hoje.


E esse movimento aconteceu em outros áreas da cidade, até então, sempre nas proximidades da região central, como o entorno do Theatro Municipal que foi considerado o primeiro autorama. Os bares reinaram sozinhos até o início dos anos 70, quando começaram ganhar a companhia de casas noturnas. Para esse outro recorte da história, indico a leitura de uma matéria sensacional do portal Music Non Stop e o filme documentário "São Paulo em Hi-Fi" de Lufe Steffen.


Os Donos da Rua


Naquela época, até o fim dos anos 90, quando eu mesmo comecei a frequentar a famosa avenida, os frequentadores ficavam dentro dos bares, onde era mais seguro, não apenas para não serem vistos como também em proteção da homofobia violenta.


Contudo, aos poucos, os frequentadores começaram a perder o medo e ocupar as calçadas. Hoje vemos algo inimaginável para aquela época, que são mesas externas onde os clientes podem ficar tranquilamente tomando a sua cerveja entre amigos em um local assumidamente destinado aos homossexuais.


Atualmente, o risco maior não é a homofobia, mas a criminalidade que, neste caso, é um perigo a qualquer pessoa, sejam gays, lésbicas ou heterossexuais que circulam na região.


Os bares mais movimentados estão concentrados apenas na primeira quadra, mais próxima à república. Seguindo nessa ordem, logo após o Caneca de Prata, um dos mais antigos da nova geração que ainda resiste é o Soda Pop e, ao seu lado, o caçula Woof Bar. Uma porta a alguns metros dali, que havia se transformado em uma casa noturna de portas fechadas e DJ, tenta ressuscitar o histórico nome Habbeas Copus. Fico na torcida para que persista e faça sucesso em nome do saudosismo.


Outras ruas da região começam a ganhar uma movimentação tão intensa quanto a Vieira, como a Rua Bento Freitas que tem sido transformada com o Bar dos Amigos e o o Blue Bar, mas isso fica para uma outra história.




Antonio é editor da plataforma de notícias Zoom Zine e diretor nas agências Vetor.am e Fluido.ag. Tem raízes bem fincadas na região central mas, de vez em quando, se arrisca em experiências além da fronteira.

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