Em comemoração a seus 22 anos, a Ricardo Camargo Galeria apresenta duas exposições icônicas que trazem ao público uma seleção de obras da arte sobre papel dos mais clássicos modernistas brasileiros. A primeira delas, Ismael Nery, recebe atenção especial e ocupa uma sala anexa do espaço. Já a mostra Recorte Modernista apresenta obras de figuras como Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Candido Portinari e Antonio Gomide.
Emiliano Di Cavalcant: Bordel (c.1938) |Guache e pastel sobre papel | 45x56cm
As exposições, realizadas em parceria com a galeria Almeida e Dale, ficam em cartaz no espaço entre 22 de setembro e 18 de novembro. Juntas, elas reúnem desenhos das mais variadas técnicas sobre papel, de 14 artistas essenciais para o modernismo brasileiro. São trabalhos ímpares, que imprimem as trajetórias estéticas de seus autores, mas que dificilmente são tão conhecidos quanto suas telas mais famosas.
Enquanto o papel como suporte ganha cada vez mais relevância nos grandes museus e nas mais importantes coleções do mundo, no Brasil o material é desprestigiado, seja por uma suposta fragilidade ou mesmo pela concepção de que desenhos são obras menos nobres. "Um bom papel é mais importante, vale mais a pena que uma tela mediana. Enriquece-nos, em vez de apenas enfeitar uma parede", pontua o galerista Ricardo Camargo, que assina a curadoria das duas exposições.
Segundo o curador, museus especializados, como o Albertina, em Viena, e o próprio Museu do Vaticano, têm coleções monumentais de papéis feitos há séculos e que resistem perfeitamente ao tempo.
Entre os desenhos apresentados, há um conjunto de 25 obras sobre papel de Ismael Nery, de 1923 a 1933. Desse universo, cinco trabalhos integraram a X Bienal de São Paulo, em 1967; outros cinco marcaram presença em importantes retrospectivas do artista, realizadas pelo Museu de Arte de São Paulo Assis Chauteaubriad (Masp) e pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), em 1974 e em 1984, respectivamente. Muitas das obras foram ainda reproduzidas em catálogos e livros sobre o artista.
A seleção traz um panorama da produção sobre papel de Nery, que faleceu jovem, aos 33 anos de idade, vítima de tuberculose. "São trabalhos bastante expressivos, que há muito tempo estão fora do mercado, alguns deles inéditos, inclusive", pontua Ricardo Camargo, destacando que a última mostra individual do artista com obras à venda ocorreu há mais de 30 anos.
Victor Brecheret marca uma das exceções à regra das mostras com a escultura Dama Paulista (1934), representação de Olívia Guedes Penteado (1872-1934), incentivadora e mecenas de várias personalidades modernistas e uma das organizadoras da Semana de 22. "Além de, por sua qualidade, constituir uma obra para museus, aqui ela está absolutamente oportuna e justificada", afirma o curador.
Ismael Nery: Quase santo (1927) |Aquarela sobre papel | 35x28cm
Ismael Nery
Modernista, Ismael Nery nadou contra a corrente dos acadêmicos e artistas de sua época. Em sua obra, nunca procurou elucidar o Brasil. Também não buscou o social ou o belo, tal como seus pares, tampouco pregou uma ruptura drástica com o passado. Místico e católico quando a intelectualidade defendia o ateísmo, Nery construiu um vocabulário plástico universal, atemporal e supranacional, com influências de várias tendências, de um expressionismo contido ao surrealismo, passando pelo cubismo.
Nery tinha necessidade de se comunicar por meio de seu trabalho, por mais intimista ou até introspectivo que fosse. Seu intenso lirismo e sua elegância espiritual não lhe permitiam tornar-se iconoclasta a ponto de fazer arte de difícil entendimento. Foi um homem que contagiou muitos que o conheceram, mas que viveu, desenhou e pintou com sofrimento - reflexo das marcas deixadas pelas mortes precoces de seu pai e irmão caçula e pela loucura de sua mãe.
A figura humana em sua universalidade é tema fundamental em sua produção, tomada em abundância pela questão do duplo, seja sob a forma de um casal - vivia com a poeta Adalgisa Nery, uma das grandes inspirações de sua obra -, seja pela divisão de um corpo único ou mesmo por um corpo acompanhado de sua sombra e seus fantasmas.
Nascido em 1900, em Belém do Pará, Ismael Nery mudou-se ainda criança para o Rio de Janeiro. Aos 15 anos, ingressou na Escola Nacional de Belas Artes e, no início dos anos 1920, realizou sua primeira viagem à Europa para estudar na Academia Julian, de Paris. Este período marcou o início da primeira fase de sua produção artística, de caráter essencialmente expressionista. O presente (1923), Vamp (1924) e Guerreiro (1924) são trabalhos dessa época.
Aos poucos, sua produção ganhou influências cubistas, a exemplo de Os Saltimbancos (c.1925) e Quase santo (1927), cujos personagens adotam formas cilíndricas e ovais. Homens e mulheres dão a impressão de formas ideais, fora do tempo e do espaço.
Aos 29 anos, descobriu-se tuberculoso, condição que sua obra passou a refletir. O surrealismo ganhou força em sua produção. Desse período, a mostra apresenta Visão submersa (1933), A mão predatória II (1933) e Transfusão (c. 1929).
"Torna-se, então, mais surrealista, daquele tipo de surrealismo que arrebenta a figura humana. Não se trata mais de fantasias oníricas um pouco à la Chagall, nem de erotismos suaves. O desfazimento do corpo do autor se metaforiza em imagens viscerais", afirma o crítico Olívio Tavares de Araújo, que assina o texto de apresentação do catálogo da mostra.
Recorte Modernista
A exposição coletiva apresenta ao público um recorte amplo do modernismo brasileiro: são 40 obras de um período que teve início com a famosa mostra de Anita Malfatti, em 1917, e que seguiu até o começo do abstracionismo com Antônio Bandeira, nos anos 1950. Di Cavalcanti, Tarsila, Portinari, Volpi, Antonio Gomide e Lasar Segall são alguns dos artistas que preenchem o espaço entre esses dois extremos que abraçam a arte moderna brasileira.
Entre os destaques reunidos na Ricardo Camargo Galeria estão desenhos primorosos de Di Cavalcanti. Em Carnaval (c.1928/29) e Três figuras com tambores (1935) e Bordel (c. 1938), o artista cria um retrato amoroso, colorido e brilhante do país, distinguindo-se dos outros modernistas por seu calor e sensualidade. Clima semelhante encontra-se em Circo (1929), de Cícero Dias, e em Parque de diversões (1946), guache e nanquim de Djanira da Mota e Silva, de seu período em Nova York.
Portinari se soma ao grupo com o guache O espantalho (1944) - tema que é retomado e atualizado pelo artista dois anos depois, em Espantalho (1946), em Paris, com maior influência, inclusive, das vanguardas da época. Celebração cubista (1922), de Antonio Gomide, deixa clara a formação e longa vivência europeias do pintor, que conheceu Picasso e começou sob a influência do cubismo.
Entre as raridades que compõem a mostra, está Paisagem antropofágica com bicho (c. 1929), grafite sobre papel de Tarsila do Amaral. Outra exceção à regra da exposição é uma obra de Diego Rivera, seu contemporâneo mexicano. Camponesa (1940), uma quase pintura, traz uma figura vergada caminhando entre troncos e galhos de árvores desfolhadas que parecem braços e mãos suplicando aos céus.
Antônio Bandeira encerra a exposição, sendo o único representante do abstracionismo. Entre as pinturas apresentadas, estão Montparnasse (1956) e Saint-Germain (1956).
Serviço
Ismael Nery (individual)
25 obras sobre papel, de 1923 a 1933
Recorte Modernista (coletiva de 14 artistas)
40 obras sobre papel, de 1918 a 1967
Escultura em mármore de Victor Brecheret, de 1934
Local: Ricardo Camargo Galeria
Endereço: Rua Frei Galvão 121 | J. Paulistano
Coquetel de abertura: 21 de setembro, das 19h às 23h (restrito para convidados)
Período expositivo: de 22 de setembro a 18 de novembro de 2017
Horário: de segunda à sexta-feira, das 10h às 19h; sábado, das 10 às 15h
Fotos: Divulgação.